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"Uma Casa Portuguesa" - A Fonseca - R Ferreira - M. Sequeira
Angel Recrds USA - Extended Play 45 rpm 1955, da minha coleccção.
Poderia justificar estas linhas com os 50 anos da publicação do primeiro álbum de originais do Genesis, o Trespass de 1970 (From Genesis to Revelation, de Março de 1969, é na verdade uma colectânea de singles), mas a ideia veio-me à cabeça por causa de uma velha disputa entre facções musicais, que recentemente ressurgiu em pequeno comité nas redes sociais: de um lado, os puristas da pop anglo-saxónica de 4 minutos, um bom poema com um refrão repetido duas vezes; e do outro lado, os que — alegadamente — se deixaram iludir ou corromper por um estilo «burguês» e pretensioso, o do rock «progressivo» ou «sinfónico», uma moda emergente nos anos 70, durante a tremenda explosão comercial da pop juvenil consumida em rodelas de vinil divulgadas em programas de rádio em Frequências Modeladas (FM; com um som muito aceitável).
Amarrados a preconceitos e teorias, os sectários não se permitem pensar e usufruir livremente da realidade que os ameaça, mas o pior é quando tentam impor a outros as suas próprias amarras. De resto, não é salutar dispormo-nos apenas a escrever coisas com o intuito de salvar o mundo, a pátria ou o destino em geral, tanto mais que o destino em geral, a pátria e o mundo não são de se deixar salvar assim — eu que o diga. Parti para este escrito com a noção de que ele pouco mais é do que uma insignificante homenagem aos Genesis de Peter Gabriel, Steve Hackett e Mike Rutherford, Tony Banks e Phil Collins (todos nascidos em 1950, à excepção de Phil, que é de Janeiro de 1951), na minha opinião uma das mais bem-sucedidas reuniões de talentos musicais que aconteceram na Inglaterra da primeira metade dos anos 70. Um agradecimento pelas muitas horas de puro prazer que me proporcionaram — a música que amamos escutamo-la sempre sozinhos, mesmo quando acompanhados. Acontece que foi nesta primeira fase e com esta formação que a banda publicou os seus quatro melhores álbuns: Nursery Crime de 1971; Foxtrot de 1972; Selling England by the Pound de 1973; e — a cereja no topo do bolo — The Lamb Lies Down on Broadway de 1974 (as capas destes discos davam uma outra crónica). Mas tenho a noção de que qualquer proselitismo a propósito de gostos e preconceitos musicais adquiridos na juventude é completamente inútil (o proselitismo é, aliás, sempre, uma inutilidade) — o mais que podemos ambicionar é obter de alguém muito amigo, mulher ou filho, tolerância, condescendência e às vezes simpatia para com a nossa obstinação. Então, no âmbito da música popular em que as adesões são essencialmente sensuais, instintivas e sentimentais, as nossas afeições são dificilmente transmissíveis a terceiros por via racional ou teórica, tanto mais que elas em geral se tornam um fenómeno narcísico, num processo de identificação em que o ouvinte, a obra e os artistas se misturam, tornando-se essa aderência numa forma de afirmação do indivíduo perante o grupo e a comunidade em que ele se deseja afirmar. Mas não é esse o caso da música dos Genesis, como tentarei explicar à frente. Prová-lo é desafio que reconheço perdido à partida: quem, como eu, gosta deles lendo este artigo continuará a gostar — espero que de uma forma mais sustentada; mas quem tomou partido contra (sempre se recusou a ouvi-los), pelas razões erradas continuará a fazer-lhes ouvidos moucos. Tenho sinceramente pena destes.
Os Genesis e o contexto musical da época. Equívocos e rótulos
Tendo nascido em 1967 de um grupo de estudantes da Charterhouse School, um colégio interno no Surrey, fundado no século XVII, desde o início os Genesis tinham um critério muito exigente de selecção dos seus elementos e depressa deixaram de ser uma banda de amigos. Aquilo era malta que gostava de fazer boa música. À sua maneira, qualquer um dos seus cinco elementos — Peter Gabriel (voz, flauta, percussão e quase sempre o autor das letras), Steve Hackett (guitarra clássica e guitarra solo), Mike Rutherford (baixo, guitarra e coros), Tony Banks (teclas) e Phil Collins (bateria e coros) — é absolutamente brilhante, mas o resultado do conjunto era muito superior à simples soma das partes. A capacidade que tinham de compor em grupo e depois, com os arranjos e na execução, fazer sobressair o que de melhor cada um tinha para dar era o grande trunfo desta banda -isso justifica que então, a assinatura das faixas dos seus álbuns, letra e música, fosse sempre assumida pelo grupo, "by Genesis". Em palco as exibições roçavam a perfeição como se fossem resultado duma performance de estúdio, apesar da complexidade melódica dos temas.
Um aparte para fazermos referência a Anthony Philips, um dos fundadores da banda, que a tendo abandonado logo após Trespass (li algures que sofria de ataques de pânico em palco), cuja influência perdurará por muito tempo. Consta que é da sua autoria «The Musical Box», o tema de abertura do álbum Nursery Crime, uma das músicas mais emblemáticas do grupo, contribuindo muito para que os Genesis se tornassem uma banda de culto. Era uma banda de concertos, calcorreavam muita estrada e faziam sucesso entre estudantes universitários, apesar do seu PA (sistema de som) medíocre — com o tempo, extravasaram das ilhas para o continente, obtendo os seus concertos assinalável êxito em França, Itália e Alemanha. O posicionamento de cada um num local fixo do palco, cada qual concentrado no seu papel com vista a um espectáculo total e envolvente, musicalmente muito rico e minucioso, tornou-se imagem de marca. Os seus primeiros discos, que venderam mal aquando do lançamento, foram sendo descobertos retroactivamente pela legião de fãs que granjearam a partir de Foxtrot. O álbum Nursery Crime subia ao primeiro terço da tabela de vendas de LP em Itália em 1975 — quatro anos depois da sua publicação —, apesar da dificuldade das suas músicas excessivamente longas passarem nos programas populares de rádio.
Foi de uma postura austera em palco destes artífices da música que começaram a destacar-se as irresistíveis pantominas e disfarces com que Peter Gabriel ilustrava trechos vocais e pequenas canções com histórias e sortilégios, poemas impenetráveis, quantas vezes mero pretexto para uma ilustração vocal, como defendeu certa vez Jorge Lima Barreto numa crónica. Tenho para mim que a maneira de Gabriel actuar em palco — um protagonismo que se tornou motivo de incómodo crescente para os outros —, o seu recurso que a representações e adereços aparatosos, era também um expediente para tentar disfarçar a sua timidez no centro do palco. O certo é que os espectáculos cada vez mais sofisticados avassalavam as audiências e tornaram-se emblemáticos.
Curioso é notar que os Genesis desta formação genial raramente produziram temas românticos, ou «canções de amor»: as letras de Peter Gabriel carregadas de referências literárias, de William Blake a T. S. Eliot, eram plenas de humor, ternura, sarcasmo e ironia mas nunca de «romance». O cantor, não sendo propriamente o líder da banda, entrava no palco para representar diferentes personagens, depois saía ou escondia-se na sombra a tempos, para todos os seus colegas brilharem nas partes instrumentais em que tinham o seu papel e espaço de afirmação. Talvez o mais injustamente discreto fosse Phil Collins (é dele o único tema romântico desse período desta fase, «More Fool Me», uma canção melosa de três minutos, boa para namorar) apesar da sua bateria intensa e vigorosa nunca se cingir à estrita marcação dos ritmos. Ironicamente, Phil Collins irá substituir Peter Gabriel como vocalista e surpreendentemente revelar-se competentíssimo compositor de canções para rádio e discoteca, afirmando-se de alguma forma o novo líder da banda.
Simplista é a tentativa dos detractores dos Genesis em rotular linearmente o período 1970-75 de «rock progressivo» ou «sinfónico», grosso modo definido por temas instrumentais longos, construídos sobre uma pequena melodia, mais ou menos «planantes» e eufóricos, com muitos sintetizadores e demais artifícios. Se quiséssemos acusar de decadência a mera pretensão da música pop se sofisticar, teríamos de recuar a Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles (1967) e Pet Sounds dos Beach Boys (1966). O antepassado dos sintetizadores, o fascinante Melotron, instrumento de teclas que reproduzia acordes de orquestra ou de coros polifónicos, é utilizado pela primeira vez pelos Beatles no início de «Strawberry Fields Forever» em 1967. Poderíamos chamar pretensiosa a última fase dos Beatles em que se destaca claramente o Álbum Branco como obra-prima? Talvez, mas seria injusto. E é legítimo apelidar de pretensioso o estilo esmerado dos King Crimson, Brian Eno ou, coisa tão diferente, os primeiros álbuns dos Pink Floyd na exploração de sensações sonoras? Talvez, mas seria igualmente injusto, porque todos esses são projectos experimentais de música que expandem, confundem e baralham o conceito de música popular — pretensiosismo e ambição são coisas distintas. Claro que durante os anos 70 usou-se e abusou-se de sintetizadores e compunham-se músicas intermináveis sem grande coerência, toneladas de decibéis e fogo-de-artifício para épater les bourgeois, o mais das vezes com o seu sentido crítico diminuído por estupefacientes. É também neste sentido que os Genesis se distinguem de qualquer onda «psicadélica»: a sua performance meticulosa e fiel a composições e arranjos sofisticados, permitindo à audiência abandonar-se a experiências em moda naqueles anos, exigia aos seus elementos um grande esforço de sobriedade e tecnicidade. Os Genesis, no auge do psicadelismo e da música de intervenção, era uma banda de caretas — ora, isso hoje é para mim é um consolo. O seu produto final era apenas a música. E a verdade é que, se a maior parte dos vinis que guardo da minha juventude faço-o por sentimentalismo, poucos são os que ouço com tanto deleite quanto estas quatro obras dos Genesis.
Antes de passar àquela que considero a sua obra-prima (só comparável em mestria com o tema «Supper’s Ready» de Foxtrot), sugiro um pequeno roteiro de três músicas a título de iniciação aos Genesis, não impeditivo que se explorem outras, quase tão geniais quanto estas:
«The Musical Box» de Nursery Crime — um tema com cerca de 10 minutos, em que os solos vigorosos de Steve Hackett a roçar o hard rock contrastam com o acento erudito das teclas e a teatralidade da vocalização de Peter Gabriel. Uma história surreal sobre o amor entre duas crianças, Cynthia e Henry, e uma caixa de música enfeitiçada, inspirado nos contos de William Blake e nos contos de Lewis Carroll.
«Supper's Ready» — ocupa praticamente o lado dois de Foxtrot, que foi a consagração da banda. Esta música, uma das mais aclamadas nos concertos ao vivo, é uma espécie de suite, com sete secções bem demarcadas onde várias canções se cruzam como árias, formando um empolgante, coeso e crescente hino, cuja letra cheia de nonsense e referências indecifráveis, resumidamente retrata uma batalha do Bem contra o Mal, terminando numa apoteótica citação do Livro do Apocalipse.
«Firth of Fifth» — um dos temas mais «progressivos» dos Genesis, onde se destacam as teclas de Tony Banks e um dos mais emblemáticos solos de guitarra de Steve Hackett. Um tema melancólico, uma espécie de pastoral com 9 minutos de puro deleite e poucas palavras (de Tony Banks).
«The Lamb Lies Down on Broadway»: o culminar da excelência
«Os Genesis cumpriram tudo o que uma sociedade burguesa esperava deles: divertir, alienar, dar-nos prazer idealista. [...] Se bem que perguntemos: a música não serve afinal, e apenas, para dar prazer?» Cito uma vez mais Jorge Lima Barreto, aquando da memorável exibição dos Genesis no Pavilhão Dramático de Cascais, em Maio de 1975, para apresentarem o seu álbum “conceptual” duplo. Repare-se que segundo o espírito da época revolucionária em curso, a boa música deveria assumir-se como «arma contra a burguesia». A mim nada me movia contra a burguesia, e nesse tempo conturbado, era muito difícil a um jovem liceal escapar à moda da «mensagem política» sempre presente nos interstícios de qualquer canção pop. Para um rapaz de 13 anos como eu, educado numa família tradicional, essa «mensagem» o mais das vezes chocava frontalmente com os valores que me eram transmitidos em casa. Ao mesmo tempo que tomava contacto com o hipnotismo planante dos Pink Floyd e me deixava seduzir por Leonard Cohen (cujas letras arduamente tentava entender), alguma música brasileira, e ainda me perdia inebriado com as canções dos Beatles que eram legado da infância, os Genesis surgiram-me como que uma lufada de ar fresco. Conheci-os através duns amigos num grupo de católicos no Verão de 1975, precisamente através desse álbum duplo The Lamb Lies Down on Broadway, que poucos meses antes tinha sido apresentado em Cascais. O disco contava uma história enigmática para o meu parco inglês, gravei-o num aparelho de fita magnética antigo adquirido na Feira da Ladra e ouvi-o durante meses da única bobine que tinha. Foram horas arrebatadas e preguiçosas a descobrir ao milímetro as 27 músicas do disco com quase 90 minutos de boas canções de 4 a 6 minutos, composições com autênticos clássicos lá dentro que exigem curiosidade e tempo para descoberta, em jogos de tensão e distensão, emoção violência e ternura, e até de bom humor — paradigmática a canção em que o jovem herói se dispõe a aprender com uma prostituta os mistérios do erotismo por um “manual”.
Aqui transcrevo uma das mais eloquentes descrições do disco, feita por autor incógnito para um número da revista Cais dedicado aos trinta anos sobre o histórico concerto em Cascais: «The Lamb Lies Down on Broadway funciona como uma colagem de fragmentos. O épico ainda dialoga com o pueril, a doçura com a acidez, a violência com a ternura, mas o travo é de desencanto, cinismo e distanciação, não se vislumbrando a progressão envolvente de temas como “The Musical Box” ou “Supper’s Ready”. Em suma, a tensão melodramática, excêntrica e grandiloquente, que a juventude freak estava habituada a reconhecer nas personagens de Gabriel, dá lugar a uma urbanidade contemporânea. As figuras míticas de um tempo metafórico permanecem — na música e em palco — mas agora como transfiguração da realidade quotidiana de um jovem porto-riquenho de blusão de cabedal, cabelo curto, ténis brancos e lata de spray na mão deambulando pela cidade que é mais cidade que todas as outras, Nova Iorque…» É a história de Rael uma espécie de punk que nas suas correrias pela cidade, rebentando cocktail-molotovs, assiste na Broadway ao rapto do seu irmão John por um estranho fenómeno alienígena. E após várias aventuras e desconcertantes encontros vai descobrir, já perto do final, num emocionante salvamento nas tumultuosas águas de uns rápidos, que um e outro são um só, dois lados da mesma moeda. Poupo-vos à descrição das faixas todas, mas destaco uma das mais emblemáticas, sumptuosas e violentas canções pré-punk, o «Back in New York City», que Jeff Buckley tão bem recupera numa interpretação nos anos 90.
O que é que tudo isto tem a ver com rock progressivo ou sinfónico? Muito pouco, certamente. Como proclama o último verso do tema final do álbum it: cos' its only knock and knowall, but I like. Uma bela charada.
Os Genesis depois de Gabriel
The Lamb Lies Down on Broadway foi sem dúvida a produção “genesiana” mais marcada pela influência de Gabriel, dando inusitada expressão à sua rebeldia e ânsia experimental. Diz-se que o nome do personagem principal, Rael, é uma espécie de anagrama de Gabriel e que toda a história relatada na obra é uma viagem introspectiva do seu autor — mas não tenho a certeza. Certeza tenho de que o resultado final é uma obra-prima e que as composições foram feitas nos moldes de sempre, em grupo, com mais influência de um e outro elemento, numa música ou noutra. E que as letras foram lá colocadas a posteriori em muitos temas, e que para isso tiveram de ser adaptados num processo tumultuoso. A animosidade do restante grupo para com Gabriel era já grande, e antes da digressão de apresentação do disco a saída do vocalista estava anunciada.
Certo é que nenhum dos elementos dos Genesis depois deste período áureo fez, a solo ou em grupo, algo que se lhe comparasse. Nem mesmo Peter Gabriel, que construiu uma carreira muito respeitável, com toques de génio aqui e ali, principalmente nos seus primeiros discos. Para o resto da banda o que veio a seguir foi algo completamente diferente, e é como se falássemos de uma nova, que bem poderia ter mudado de nome. Concedo que os primeiros dois discos da era pós Gabriel ostentam ainda belos temas e composições de grande qualidade, esses sim bastante «progressivos», onde se nota uma crescente preponderância das teclas de Tony Banks. A «genialidade colectiva» que remanescia desapareceu com a saída do guitarrista Steve Hackett, que imprimia complexidade melódica, uma característica importante que então se extinguiu definitivamente. Sem isso, e sem a vertente rebelde e experimental de Peter Gabriel, os Genesis tornaram-se enfadonhos, intercalando canções comerciais com intermináveis lençóis grandiloquentes. Esta nova fórmula garantiu-lhe estádios cheios e milhões de libras, mas duvido que o seu legado permaneça por muito tempo.
Na verdade, tenho muitas dúvidas que o legado de 99% da música moderna prevaleça para lá da vida das gerações suas contemporâneas; tudo foi feito descartável e circunstancial — é o ar do nosso tempo. E possivelmente isto foi tudo uma ilusão, para que me predispus numa idade mais susceptível e que a minha sensibilidade (ou será teimosia?) faz prevalecer como culto ou capricho até à maturidade. Consolam-me os muitos covers dos melhores temas dos Genesis 70-75 a que se dedicam inúmeros jovens músicos em impressionantes vídeos do Youtube. Consola-me também encontrar alguma gente nova nos concertos de tributo a que assisti nos últimos anos. Por tratar-se de uma música tão complicada quanto «cerebral», a sua interpretação por outros resulta muito bem, bastando para tal que estes sejam musical e tecnicamente evoluídos e gostem do que fazem.
Termino como comecei: com este artigo apenas pretendo fazer uma homenagem àqueles cinco rapazes que tanto prazer me deram e continuam a dar. E também enumerar argumentos que justifiquem esta minha paixão. Mas se com estas linhas algum incauto se dispuser a conhecer estas quatro pérolas da música contemporânea — «Nursery Crime», «Foxtrot», «Selling England by the Pound» e The Lamb Lies Down on Broadway —, estou certo que o maior consolo será seu.
PS.: Este texto é em boa parte a minha argumentação para uma prometida tertúlia entre duas facções inconciliáveis que está adiada para uma noitada assim que a DGS o permitir. A boa conversa é o que de melhor se leva daqui.
Para uns delicados ouvidos analógicos como os meus é reconfortante verificar como, a par do vertiginoso processo de desmaterialização da música e do crescimento exponencial do seu consumo através das de plataformas de streaming como o Spotify, Apple Music ou o Google Play, o mercado do vinil vai-se afirmando como uma consolidada alternativa para os verdadeiros melómanos e audiófilos. A comprová-lo basta verificar o espaço a ele reservado nas lojas Fnac, já para não falar da proliferação de novas lojas de discos nos grandes centros urbanos, ou pelo facto da versão em vinil de "Black Star" de David Bowie ter vendido globalmente perto de 500.000 cópias. No entanto convém realçar que este crescimento terá sempre como limitação os custos monetários necessários para a aquisição de um competente sistema de reprodução: um bom gira-discos com uma boa célula, um amplificador competente com entrada “Phono” e umas colunas adequadas ao espaço em que vão tocar. De resto faz-me alguma confusão a profusão de oferta de pequenos gira-discos de má qualidade, a maior parte com um atraente design “vintage”, que constituirão um logro para o consumidor, que rapidamente se perceberá que, para além de estragarem dos discos, não preenchem os valores mínimos de qualidade sonora comparativamente a qualquer pequeno dispositivo de reprodução digital, até o smartphone mais básico.
O maior (16 polegadas, 78 rpm) é o já referido disco da Emissora Nacional "Desfile da gente do mar" gravado em 1947. Os mais pequenos são um o Kiddiphone 6 polegadas e um minúsculo disco castanho de 78 RPM com 4 polegadas com rimas infantis provávelmente parte de um brinquedo.
Enorme disco Pathe (14 polegadas) 90 rpm: "Madeleine" (A.S. Petit) Polka pour piston 1905 (?). Com leitura por agulha de safira e rotação invertida (espiral de dentro para fora). Só é possível escutar em aparelhos próprios da marca francesa.
Provavelmente dos maiores discos que existem: com 16 polegadas e 78 rpm, esta é uma gravação da Emissora Nacional "Desfile da gente do mar" - 1947. Requer equipamento apropriado para escutar, que não possuo.
Já disse noutras ocasiões como tenho dificuldade em escrever sobre discos que não gosto, e como a coisa piora muito quando me apaixono por algum – talvez com receio do ridiculo que são sempre as declarações de amor. É por isso que venho adiando estas palavras sobre Shadows in the Night, o 36º disco de Bob Dylan que nos surpreende com a interpretação nasalada e displicente de dez temas criteriosamente repescados do reportório de Frank Sinatra, um seu antípoda da música popular.
A estranheza de Shadows in the Night adensa-se ao constatarmos que a grande orquestra tipica de Sinatra foi substituída por uma pequena banda em que se destaca uma desconcertante pedal steel guitar de tonalidades havaianas. No mais, os arranjos são suportados pelo dedilhar da guitarra acústica de Bob Dylan, um contrabaixo e metais esporádicos. O resultado é o encantamento, que ganha laivos de submissão à vigésima audição. Produzido por Jack Frost que o grava "ao natural" - sem remisturas (hoverdubs), nem filtros - a coisa resulta mágica, como se os rapazes estivessem ali mesmo a cantar, a tocar, a respirar, para nós. O modo como foi captado o som produz um extraordinário efeito de presença física, potenciado se o álbum for reproduzido em formato vinil numa boa aparelhagem.
O facto é que um mês depois de ouvir Shadows in the Night, até parece que temas doces e amargos como "The Night We Called It a Day" , "Why Try to Change Me Now", "Some Enchanted Evening", "What'll I Do" foram criados para a voz de Dylan, melancólico anti-heroi, cowboy rouco e desajeitado, e não para um glamoroso romântico do cinema e do music hall como Sinatra era, com a sua voz poderosa e sensual. Se lá em cima já tiveram a desfaçatez de lhe mostrar este álbum, ele certamente irá perdoar-me o atrevimento desta opinião. Ironicamente, parece-me que a interpretação de "I'm a Fool to Want You" é o melhor tributo que Bob Dylan poderia fazer ao seu autor, que um dia disse do Rock 'n' Roll ser “a música marcial feita para delinquentes, cantada por cretinos.”
De resto, o mais importante é comprar este álbum, e usufruir com deleite da Graça de se ter o coração perto duns bons ouvidos.
A credibilização entre os melómanos da indústria fonográfica emergente no início do Século XX dá-se muito por conta de Enrico Caruso quando este prodigioso tenor italiano concede finalmente registar a sua voz, não para Thomas Edison mas para Emile Berliner e a sua The Gramophone Company para quem gravou múltiplos discos entre 1903 e 1921. Os cilindros de cera estavam definitivamente destronados. Aqui partilho uma pequena pérola recentemente adicionada à minha colecção, nada menos que a área “Viva il vino spumeggiant” da Ópera Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni interpretada por Enrico Caruso, gravado em Inglaterra em 1905 sob a chancela Gramophone Concert Record G.C. 52193 (rótulo cor de rosa).
É no mínimo estranho como o recente interesse do jornalismo pelo Vinil e colecções de discos patente em diversos artigos e reportagens publicadas ultimamente se circunscreva à segunda metade do século XX, como se a motivação para esse olhar fosse tão só explorar a nostalgia dos leitores mais velhos por esse objecto icónico. Mas acontece que mundo não começou com a formação do nosso umbigo.
Para contrariar essa perspectiva míope aqui vos apresento uma preciosidade, não só pela idade e rareza, mas pela excelência patenteada neste “Fado da Pallida Madrugada” de 1906 interpretado por Manassés de Lacerda um dos pioneiros da Canção de Coimbra. A investigação desta matéria deverá contemplar as suas origem nos finais do século XIX, tanto mais que a história e inventariação do espólio fonográfico nacional tem muito ainda por fazer.
Carmen Miranda, ou a “brasileira” de Marco de Canaveses (1909 -1955), estrela de Hollywood é referência obrigatória do espólio fonográfico da primeira metade do século XX. Aqui partilho "Upa Upa" do filme "Brazil" em que a artista canta uma marcha acompanhada com o Bando da Lua, um tema de Ary Barroso e Ervin Drake dum Disco DECCA - L3729 gravado em 1945.
Este e muitas outras gravações portuguesas antigas podem ser escutadas aqui.
Uma peça de colecção rara... Amália no Café Luso gravado em Dezembro de 1955 e publicada em 1974 dois discos de vinil mono com requintada caixa arquivadora e brochura.
Belo achado este que adquiri há dias numa feira de velharias: um exemplar dos primeiros discos em vinil gravados em mico espiras a 45 rpm com 7 polegadas, formato revolucionário lançado pela RCA Victor no final dos anos quarenta. Apresentado num simples envelope de papel pardo à moda dos velhos 78 rpm em baquelite, sem grande sofisticação no grafismo e gravado em plástico encarnado, trata-se Concerto de Varsóvia de Addinsell tocado em duas partes pela Boston Pops Orchestra dirigida por Arthur Fiedler. Este single atingiu o 4º lugar das tabelas da Billboard em Outubro de 1949 na categoria de “Classical Sinlges”.
RCA Victor Record
“45” RPM
The Finest Record Ever Made
A mais recente criação de Beck, o álbum Morning Phase - tão aclamado pela crítica, tem o tempo indicado para um LP à antiga e foi nesse formato que o adquiri. Concedo que é um disco muito inspirado e agradável de se ouvir, faltando-lhe talvez alguma irreverência, que ao que julgo entender se fica pela exploração desse mesmo “revivalismo analógico”. É precisamente essa a curiosidade que me motiva este post; de como a versão em mp3 que é fornecida com o vinil, através dum cupão com um endereço web e um código, vem numa mistura que ostenta com subtileza os estalidos da agulha a pousar e levantar do disco ao principio e no fim de cada lado (no caso, virtual) e reproduz aqui e ali aquela suavíssma crepitação dos efeitos electroestáticos do contacto da agulha. Ora a ideia, apesar de divertida, parece-me um tanto absurda senão até algo ingénua, já que são justamente esses inevitáveis ruídos de fundo, “sentidas” pelas mais sensíveis safiras, o "Calcanhar de Aquiles" dos melhores gira-discos.
O que será feito destes discos “double face” os “melhores em nitidez e duração” e da referenciação biográfica de todos estes “auctores nacionais” aqui anunciados pela marca “Simplex” de J. Castello Branco na revista Ilustração Portuguesa de Abril 1908?
Milú, e "A Minha Casinha" de Silva Tavares - António Melo
Do filme "O Costa do Castelo"
Orquestra de Fernando Carvalho
Parlophone
DP 18
Londres
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