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O Epifânio, o meu bom e inefável amigo Epifânio, sofria da neurastenia. É uma doença como outra qualquer, com a vantagem de ser atributo só da gente de algo. Tinha pelas maquinas falantes a mesma animadversão que Mafoma nutria pelo toucinho. E tanto assim que casou propositadamente com uma rapariga órfã de mãe, só para não ter que aturar, depois do grande nó, uma grafonola “Sogra”- uma das marcas mais na moda.
A par de outras madurezas de igual teor, que ele não fazia afixar por toda a parte, o Epifânio sofria também, e em suma, gramofonofobia- uma doença esquisita como um ralo.
Há dias, o Epifânio acordou mal disposto como burro. Tivera um sonho extravagante, pois caíra numa fábrica enorme desses aparelhos infernais, com buzinas que bocas de canhões e um som atroador – de pôr patético um santo. E, mal abriu os olhos, depois de se convencer da irrealidade do que acabara de observar, o Epifânio não teve tempo de recuperar a tranquilidade. Lá dentro, na sala de visitas, a vizinha Silveria conversava com a esposa, entusiasmada, eloquentíssima.
De que se tratava?
Pôs o ouvido à escuta e ouviu que o malvado do seu homem, aconselhado pelo Joaquim sapateiro que é uma boa rolha, lhe saíra de casa na véspera com o cordão que lhe custara uns centos, a maquina de costura, um conto e quinhentos em dinheiro que ela amealhara durante longos meses, e que o patife, para maior cumulo, nem sequer dissera “água vai”...
E por aqui abaixo uma lengalenga de tal ordem que o Epifânio – que nada tinha que ver com essas coisas, nem a esposa – ergueu-se do leito, vestiu-se num ápice e, enquanto o diabo esfrega um olho, pôs-se na rua.
Mas estava escrito que nesse dia o Epifânio tinha que comer duas verdes com uma madura, como se diz em linguagem rasca.
Logo ao desembocar da artéria, mesmo na esquina, em casa das Vasconcelos, umas pequenas sirigaitas que tocam tudo – até piano – um gramofone, daqueles autênticos “Pathé-Freres”, antigo como o arroz de quinze, roufenhava um fado triste e sonâmbulo do nosso conhecido Menano.
O Epifânio não esteve com meias medidas. Mal supunha ele, porém, que mesmo em frente, num café qualquer, até aquecia silencioso e às moscas e aonde procurara refúgio, uma grafonola das pequenas agora acordava o espaço com um jazz destrambelhado e ensurdecedor.
Por pouco não deu em doido. Pagou o café, mesmo sem o tomar, e correu, rua abaixo como um tresloucado.
O Epifânio andou assim nesta contradança o dia quase inteiro, fugindo de Herodes para Pilatos e de Pilatos para Herodes. Em toda a parte, como se fora uma praga, lhe surgia a buzina de um gramofone, uma grafonola, um “Parlophoa” – em suma, uma dessas maquinas que o diabo inventara para lhe dar cabo do espírito, com certeza, e, não obstante todos os esforços nesse sentido, jamais nesse dia conseguia livrar-se delas.
Teve, por fim, uma resolução heróica, acertada, decidida. Depois de tanta volta, já cansado, o peito a arfar, só em casa acharia o repouso apetecido, agora que aquela rela da vizinha decerto acabar a conversa, pois havia demorado o dia inteiro a sua peregrinação.
E se melhor o pensou, melhor o fez.
Em casa do Epifânio...
A mulher - Ó homem, vens com uma tumba! Que te aconteceu?
Epifânio - Deixa-me. Uma grande desgraça! Uma tremenda desgraça!
A mulher - Credo! Nem pareces o mesmo. E eu que tinha uma novidade tão boa para te dar...
Epifânio - Uma novidade? Conta, para ver se me passam estes nervos. Estou que nem uma pilha.
A mulher- Queres saber, então?
Epifânio - Anda! Avia-te depressa. Que foi?
A mulher- Escuta, meu querido. Comprei hoje uma grafonola para os nossos serões...
O Epifânio, que tinha caído com uma sincope, faleceu repentinamente e no dia seguinte teve um belo enterro...
MAXIM
Sempre Fixe Semanário Humorístico - 13 - 5 - 931
* Reconhecido ao meu amigo Vasco Rosa, com uma vénia pelo recorte.
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